ESPECIAL: Uma droga lícita

Por Luiz Henrique Monteiro

Uma das doenças mais fatais do mundo não afeta apenas alcoólatras. Organizações sem fins lucrativos tentam dar esperança às vítimas

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool mata cerca de 3 milhões de pessoas no mundo a cada ano, além de globalmente ser o sétimo maior causador de mortes prematuras. Esses dados divulgados em 2018 foram tão alarmantes que fizeram o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, declarar que ‘’é hora de fazer mais para prevenir essa séria ameaça ao desenvolvimento de sociedades saudáveis’’. Porém, como lutar contra uma doença que não afeta apenas os que ingerem álcool, mas também os familiares, amigos e companheiros que rodeiam essas pessoas?

Em dados também da OMS, apenas no Brasil existem cerca de 4 milhões de pessoas reféns do alcoolismo, sendo que em 2016, o nosso consumo de álcool per capita atingiu 8,6 litros contra a média internacional de 6,4 litros por pessoa. Trazendo para a realidade da capital federal, uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde em 2017 mostrou que Brasília é a quarta capital do Brasil onde mais se ingere álcool de forma abusiva, ficando atrás apenas de Palmas, Cuiabá e Salvador.

Renata Figueiredo, 34 anos, é médica psiquiatra formada pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Membro efetiva da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Renata também tem experiência em dependência química e explica quais fatores podem levar uma pessoa ao alcoolismo.

‘’A síndrome de dependência ao álcool é um transtorno psiquiátrico, e como todo transtorno psiquiátrico não é possível apontar somente uma causa. Fatores genéticos e ambientais, como relações conflituosas desde a infância, acesso a bebidas ou incentivo ao uso são importantes no início do consumo de álcool. A presença de outras doenças mentais também pode ser causa ou consequência do alcoolismo. A somatória desses fatores é determinante para estabelecer a doença’’, disse a especialista.

A psiquiatra Renata Figueiredo tem experiência com casos de dependência química (foto: Arquivo pessoal)

Sobre os efeitos do álcool no organismo, a psiquiatra explica que o consumo exacerbado da bebida pode gerar muitos estragos para quem vira dependente, como a diminuição de reflexos, dificuldade de coordenação e alteração de funções visuais. ‘’O álcool atua como depressor no sistema nervoso central. Ocorre principalmente aumento da resposta inibitória de um neurotransmissor chamado GABA, ácido gama-aminobutírico, e redução da neurotransmissão glutaminérgica excitatória’’.

Como outras drogas que geram dependência, o álcool age em neurotransmissores como serotonina, noradrenalina e dopamina, que causam sensações como prazer, felicidade e bem-estar. José Norberto Fiuza, 58 anos, é terapeuta com formação na Alemanha e trabalha há 35 anos com casos de dependência química. Ele faz um paralelo de como o álcool pode ser um refúgio do alcoólatra para não se sentir triste.

‘’A relação entre a depressão e o alcoolismo é estreita. Nos diagnósticos estão quase sempre juntos. Então, situações de felicidade como reencontrar um velho amigo, comer sua comida preferida ou até praticar sexo são casos em que se abre um depósito de serotonina no seu cérebro. E é essa sensação que o alcoólatra tem ao ingerir álcool. Em muitos casos, os dependentes não bebem por vontade, bebem para não se sentirem tristes’’, disse o terapeuta.

Fiuza também diz que o que potencializa o alcoolismo na sociedade é o fato do álcool ser uma ‘’droga permitida por lei’’, que muitas vezes é romantizado em novelas, filmes e séries, além da presença de uma potente indústria publicitária.

”Em muitos casos, os dependentes não bebem por vontade, bebem para não se sentirem tristes’’, disse José Norberto Fiuza

‘’O foco da sociedade e da mídia são sempre para drogas ilícitas, como maconha, cocaína, crack, entre outros. Mas na verdade, em proporções, a representatividade do uso de drogas ilegais entre dependentes químicos é de 7% a 12%. O que quer dizer que no mínimo 88% dos dependentes são dependentes de drogas lícitas e entre elas está, em primeiro lugar, o álcool e depois os psicofármacos, como sedativos e moderadores de apetite à base de anfetamina e metafetamina, por exemplo’’, conta Fiuza.

Alcoólicos Anônimos

Em um cenário pós-crise econômica de 1929, quando famílias perderam suas posses e muitos se agarraram ao álcool, Bill Wilson, um corretor da bolsa de Nova York, e Robert Holbrook Smith, um cirurgião de Ohio, ambos alcoólatras que tentavam escapar da doença, decidiram criar uma comunidade para apoiar quem passava pelo mesmo problema. A popularização do A.A se deu em março de 1941, quando o jornalista Jack Alexander publicou um artigo sobre os grupos no Saturday Evening Post, um influente jornal da época. Antes do artigo, os grupos de A.A possuíam apenas 2.000 membros e, no final daquele mesmo ano, já eram mais de 8.000.

No Brasil, a primeira reunião de um grupo de Alcoólicos Anônimos aconteceu em 5 de setembro de 1947, no Rio de Janeiro. Renato (nome fictício), 66 anos, é economista e coordenador do Grupo Alvorada, um grupo de alcoólicos anônimos que existe no Distrito Federal desde 1969. Renato não pode revelar seu nome verdadeiro porque, segundo as normas do próprio grupo, ninguém pode falar como seu representante, mas ele conta como eles tentam ajudar quem os procura. ‘’Aqui trabalhamos com a fala e a escuta. Você fala e o companheiro escuta, depois o companheiro fala e você escuta, e é assim que todos os A.A no mundo funcionam’’.

Entrada do Grupo Alvorada, localizado na 505 sul

Como coordenador de um dos grupos de apoio mais tradicionais do DF, Renato diz qual é a maior dificuldade em tentar recuperar um dependente alcoólico. ‘’A maior dificuldade é o alcoólatra aceitar a doença, porque o alcoolismo é a doença da negação. Há casos em que a própria família nega que o alcoólatra seja doente, porque existe na sociedade um pensamento de que alcoólatra é só aquela pessoa que fica deitada na rua, fedendo, com uma cachaça na mão. Mas não, o alcoólatra é qualquer pessoa que altera o seu comportamento depois que beber’’, disse Renato.

Independente de quanto tempo esteja sóbrio, todo membro de A.A se define como um alcoólatra em recuperação. Como uma forma de tentar implantar a filosofia de ‘’um passo de cada vez’’, quando cada membro termina a sua fala, reforça que passou mais 24 horas sem ingerir álcool, e não ‘’uma semana’’, ‘’6 meses’’ ou ‘’10 anos’’. Porém, para Felipe (nome fictício), são muito mais que 24 horas de sobriedade.

Felipe, 48 anos, é vigilante e membro do Grupo Alvorada e está há 22 anos sem ingerir álcool. Mesmo com tanto tempo de sobriedade, ele diz que usa lembranças de um passado traumático e distante para garantir que nunca mais quebrará o pacto que fez consigo mesmo. Seu primeiro contato com o álcool foi no natal de 1979, quando tinha apenas 9 anos de idade, e não só ele como o irmão mais novo e dois amiguinhos também beberam.

‘’Foi um Natal regado a álcool. Meu avô já tinha desmaiado de tão bêbado, e também estavam meus tios e minha mãe. No calor da emoção, da comemoração pela data, as crianças iam pedindo para beber e os adultos foram dando uns goles pra gente. E eu acabei tomando um porre, vomitei, passei mal… Depois disso, minha família não me deixou beber mais’’, contou Felipe.

Perguntado sobre fatores que podem levar uma pessoa ao alcoolismo, José Norberto Fiuza respondeu que em décadas observando e estudando a dependência química percebeu alguns fatores importantes. ‘’O histórico emocional, o histórico familiar, pré-disposição enzimática e fatores sociais com certeza são importantes para formar um alcoólatra. Sobre o fator familiar, se a criança cresce em um ambiente onde a bebida é presente, claro que ela fica mais propensa a beber’’, disse o terapeuta.

Na adolescência, a vida de Felipe ficou mais sombria. Em uma Brasília nos anos 80, graças a amigos e influências sociais, o jovem começou a abusar do álcool e a usar drogas ilícitas. ‘’Eu tinha acabado de fazer 16 anos quando desenvolvi o alcoolismo. E sendo bem sincero, desde aquele momento, eu tinha certeza que eu já estava com um problema e que aquilo ia afetar toda a minha vida. Já fiquei internado em clínicas de reabilitação quatro vezes. A primeira vez eu fui obrigado a procurar ajuda, em janeiro de 1987. Mas com uma semana de internação, eu fui expulso da clínica’’.

Nas outras três clínicas por onde Felipe passou, foi por própria iniciativa do rapaz que queria mudar. Mas, apesar de ter a consciência de que tinha uma doença e que aquilo acabaria com sua vida, Felipe passou 12 anos procurando ajuda e sofrendo recaídas, até que um episódio terrível em sua vida o fez ter forças para mudar.

‘’Na época, eu estava no fundo do poço. Estava achando tudo insuportável, não tinha mais esperanças e achava que ia acabar morrendo bêbado e drogado. Teve um dia que, bebendo e usando droga com um pessoal, do nada, começou uma briga entre um cara e a família dele. Eu fui separar a briga e o cara acabou me dando uma facada. Nesse momento eu percebi que havia chegado ao limite da minha humilhação e foi através disso que eu encarei a sobriedade com outros olhos e perspectiva, há 22 anos’’, disse Felipe.

Duas décadas depois, Felipe continua frequentando reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Após tanto tempo, muitos diriam que Felipe já está curado e não precisa mais, porém o homem que deu a volta por cima diz encarar a sobriedade como a coisa mais importante da vida. ‘’Manter a sobriedade é o que me mantém vivo, feliz, com aquela chama de amor à vida. Tenho comigo que não posso quebrar a minha sobriedade, sei que se eu voltar a beber, vou acabar morrendo das piores mazelas da vida’’.

”Evite o primeiro gole” é a regra primordial do Grupo Alvorada aos seus membros

Às vezes, o amor não é o bastante

Quando se fala no alcoolismo, é normal pensar que os únicos afetados pela doença são os próprios alcoólatras, que podem acabar adoecendo, contrair sequelas permanentes ou até mesmo morrer. Segundo pesquisa feita pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2012, 12% dos brasileiros eram alcoólatras. Na época, já eram cerca de 22,8 milhões de dependentes da substância no Brasil. Porém outras milhões de pessoas que não ingerem uma gota de álcool acabam sendo prejudicadas pela doença de formas tão traumáticas que podem acabar gerando sequelas emocionais. Para atender esse grupo de pessoas, foi criado o Al-Anon.

Tanto o Al-Anon quanto o A.A garantem o sigilo das identidades e histórias que ali são contadas

O Al-Anon foi criado em 1951 pelos mesmos criadores dos Alcoólicos Anônimos. Eduarda (nome fictício), 48 anos, é dona de casa e coordenadora do Grupo Alvorecer, que realiza suas reuniões na Asa Sul, e explica qual é o propósito dos encontros. ‘’O Al-Anon é uma associação de parentes e amigos de alcoólatras, que compartilham esperança, força e experiência para quem precisa. Cada um tem suas sequelas, traumas e dores, pois é a experiência de cada um. Mas é para isso que existem as reuniões presenciais’’.

Vitória (nome fictício), 39 anos, é servidora pública e membro do Al-Anon desde outubro do ano passado. Nova no grupo, a moça cresceu em um ambiente familiar onde o álcool sempre esteve presente, como Felipe. Vitória foi afetada pelo alcoolismo do pai que sempre alegou não ingerir quantidade suficiente de álcool para ser considerado um alcoólatra. A mesma negação que Renato, coordenador do Grupo Alvorada, afirmou ser o maior empecilho para recuperar um alcoólatra.

A psiquiatra Renata Figueiredo relatou que a aproximação de pessoas não alcoólicas com pessoas que possuem a dependência pode gerar a codependência. ‘’Existe um transtorno que afeta as pessoas próximas aos portadores de transtornos mentais, normalmente dependentes químicos chamado de codependência. Esses codependentes se sentem responsável pelo outro, podem aceitar abusos de todos os tipos, relaciona a sua felicidade a presença do outro’’, disse Renata.

Vitória, desde nova, percebia um comportamento anormal do pai por decorrência da bebida e relata como era o relacionamento com ele. ‘’Por causa do alcoolismo, meu pai adquiriu um padrão de comportamento. Virou uma pessoa incoerente, inconsequente e inconstante e, pra quem convive com esse tipo de pessoa, principalmente quando se é criança, é muito difícil. Meu pai falava que eu fazia tudo errado, nada o que eu fazia estava bom pra ele. Aquilo minou a minha autoestima e uma série de outras coisas da minha vida, que vai desde o meu desempenho profissional até a minha capacidade de me relacionar amorosamente.’’

Aos 20 anos, Vitória decidiu estudar sobre o alcoolismo para tentar entender melhor o que acontecia em seu ambiente familiar. Nos estudos, ela percebeu que a disfuncionalidade presente em sua casa girava em torno do álcool. Porém, mesmo entendendo o problema, Vitória apresentou quatro episódios depressivos e em dois deles chegou a planejar maneiras de se matar.

Após passar boa parte da vida visitando diferentes terapeutas e formas de terapia, Vitória conta como decidiu fazer parte do Al-Anon. ‘’Já tentei todas as abordagens terapêuticas possíveis, mas sempre chegava um momento em que eu ficava estagnada. Isso mudou quando conheci uma terapeuta que me passou muitos livros, muitos filmes, até que eu assisti um filme sobre os fundadores do A.A e do Al-Anon, chamado Às Vezes o Amor Não é o Bastante, e foi o filme que mudou a minha vida. ’’

Um dia após assistir o filme, Vitória decidiu ir para uma reunião do Grupo Alvorecer, que segundo a mesma, foi onde achou a melhor forma de encarar os traumas do passado. Tanto o A.A quanto o Al-Anon são locais que podem não ter todas as respostas para tirar alguém do alcoolismo, mas são locais em que pessoas machucadas, mas determinadas como Vitória e Felipe, podem refletir e tentar superar o que todos ali compartilham entre si: dor e esperança.

‘’Eu penso que o álcool é o grande ladrão. Eu não sei o quanto da depressão que tive foi por culpa do álcool, mas eu sei de todas as impossibilidades que essa doença me causou. Eu sempre paro e penso em todas as possibilidades que o álcool me roubou. A possibilidade de ter uma família estruturada, a possibilidade de ter um pai equilibrado, chances profissionais que eu poderia ter me capacitado caso tivesse um ambiente de apoio… É o grande ladrão’’, finalizou Vitória.

O álcool e as mulheres

Um estudo publicado pela revista cientifica BMJ Open em 2016 analisou o consumo de álcool de mais de 4 milhões de pessoas, entre homens e mulheres, ao longo de um século. Historicamente, os homens sempre consumiram entre 2 a 12 vezes mais álcool do que as mulheres, porém o estudo mostrou que essa diferença diminuiu drasticamente nos últimos anos, tanto que alguns especialistas chegam a dizer que as mulheres bebem mais do que os homens nos dias atuais.

Entre 1891 e 1910, os homens tinham duas vezes mais probabilidade de consumir álcool do que as mulheres. Já entre 1991 e 2000 essa taxa de predisposição dos homens beberem mais do que as mulheres caiu para 1,1 vez.

A psiquiatra Renata Figueiredo, especialista em dependência química, dá a sua opinião sobre o porquê as mulheres estão bebendo cada vez mais. ‘’As mudanças no comportamento das mulheres, a busca pela igualdade, quebra de barreiras relacionadas ao gênero, melhora da situação financeira, independência, uso de álcool para aliviar tensões por acúmulo de funções e estímulo ao consumo, sem dúvida são motivos para o aumento do hábito etílico no sexo feminino’’, falou a especialista.

E isso é um problema, pois um artigo de 2011 publicado pelo médico oncologista e cientista Dráuzio Varela mostra que para todos os níveis de consumo alcoólico, as mulheres correm mais risco de desenvolver doenças do que os homens, como doenças cardiovasculares, hepáticas, psiquiátricas, além de aumentar o risco do câncer de mama.

Sobre o porquê o organismo feminino é mais suscetível a desenvolver doenças devido ao álcool, Renata Figueiredo explica: ‘’As mulheres possuem maior quantidade de gordura corporal e menor quantidade de água, o que faz com que a substância fique mais concentrada’’.

Alcoólicos Anônimos e Al-Anons em Brasília

A.A
Grupo Alvorada – Av. W/3 Sul Q. 505 Bloco A Entrada 21, 2º Andar – Asa Sul
Grupo Santo Antônio – SQS 314 Sul Escola Classe – Brasilia (DF)
Grupo Planalto – Av. L-2 Norte Quadra 604 – Igreja São José, ao lado HUB – Asa Norte
Grupo Libertação – Quadra.02 D/E Ig. S. Carlos (em frente ao CB/DF.) – Sobradinho
Grupo Brasília – Ed. Paranoá Center Sala 210 – Taguatinga Centro

Para conhecer mais lugares ou informações, acesse: grupos.aa-df.org/

Al-Anon
Grupo Alvorecer – W5 sul, Quadra 905, Igreja Santa Cruz – Asa Sul
Grupo HRAN – SMHN Q 1, Hospital HRAN – Asa Norte
Grupo Florescer – Área especial, Praça 02, Quadra 21, Paróquia São Sebastião – Gama
Grupo Harmonia – L2 Sul, Quadra 606, Paróquia Santíssimo Sacramento – Asa Sul
Grupo Despertar – CND, Área especial 01, Paróquia São José – Taguatinga Norte

Para conhecer mais lugares ou informações, acesse: www.al-anon.org.br/grupos/df.html

Por Luiz Henrique Monteiro

Edilayne Martins

"Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida." (Bob Marley)

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